terça-feira, 4 de maio de 2010

Contextualizando II ...

A obra de arte e a práxis

Em Teoria Estética nas palavras do comentador Kothe “Adorno oscila entre negar a possibilidade de produzir arte depois de Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundo que o chocava, mas que ele não podia deixar de olhar e denominar”. Essa postura foi extremamente criticada pelos movimentos de contestação radical, que o acusavam de buscar refúgio na pura teoria ou na criação artística, esquivando-se assim da práxis política. A seus detratores, Adorno responde que, embora plausível para muitos, o argumento de que contra a totalidade bárbara não surtem efeito senão os meios bárbaros, na verdade não releva que, apesar disso, atinge-se um valor limite. A violência que há cinqüenta anos podia parecer legítima àqueles que nutrissem a esperança abstrata e a ilusão de uma transformação total está, após a experiência do nazismo e do horror stalinista, inextricavelmente imbricada naquilo que deveria ser modificado: “ou a humanidade renuncia à violência da lei de talião, ou a pretendida práxis política radical renova o terror do passado”.

Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a obra de arte, para Adorno, apresenta-se, socialmente, como antítese da sociedade, cujas antinomias e antagonismos nela reaparecem como problemas internos de sua forma. Por outro lado, entre autor, obra e público, a obra adquire prioridade epistemológica, afirmando-se como ente autônomo. Esse duplo caráter vincula-se à própria natureza desdobrada da arte, que se constitui como aparência. Ela é aparência por sua diferença em relação à realidade, pelo caráter aparente da realidade que pretende retratar, pelo caráter aparente do espírito do qual ela é uma manifestação; a arte é até mesmo aparência de si própria na medida em que pretende ser o que não pode ser: algo perfeito num mundo imperfeito, por se apresentar como um ente definitivo, quando na verdade é algo feito e tornado como é.

Horkeimer: ciência e totalitarismo

Max Horkheimer

A expressão “teoria crítica” é empregada para designar o conjunto das concepções da Escola de Frankfurt. Horkheimer delineia seus traços principais, tomando como ponto de partida o marxismo e opondo-se àquilo que ele designa pela expressão “teoria tradicional”. Para Horkheimer, o típico da teoria marxista é, por um lado, não pretender qualquer visão concludente da totalidade e, por outro, preocupar-se com o desenvolvimento concreto do pensamento. Desse modo, as categorias marxistas não são entendidas como conceitos definitivos, mas como indicações para investigações ulteriores, cujos resultados retroajam sobre elas próprias. Quando se vale, nos mais diversos contextos, da expressão “materialismo” Horkheimer não repete ou transcreve simplesmente o material codificado nas obras de Marx e Engels, mas reflete esse materialismo segundo a óptica dos momentos subjetivos e objetivos que devem entrar na interpretação desses autores.

Por teoria tradicional Horkheimer entende uma certa concepção de ciência resultante do longo processo de desenvolvimento que remonta ao Discurso do Método de Descartes (1596-1650). Descartes – diz Horkheimer – fundamentou o ideal de ciência como sistema dedutivo, no qual todas as proposições referentes a determinado campo deveriam ser ligadas de tal modo que a maior parte delas pudesse ser derivada de algumas poucas. Estas formariam os princípios gerais que tornariam mais completa a teoria, quanto menor fosse seu número. A exigência fundamental dos sistemas teóricos construídos dessa maneira seria a de que todos os elementos assim ligados o fossem de modo direto e não contraditório, transformando-se em puro sistema matemático de signos. Por outro lado, a teoria tradicional encontrou amplas justificativas para um tal tipo de ciência no fato de que os sistemas assim construído construídos são extremamente aptos à utilização operativa, isto é, sua aplicabilidade prática é muito vasta.

Horkheimer admite a legitimidade e a validez de tal concepção, reconhecendo o quanto ela contribuiu para o controle técnico da natureza, transformando-se, como diz Marx, em “força produtiva imediata”. Mas o reverso da moeda é negativo. Para Horkheimer, o trabalho do especialista, dentro dos moldes da teoria tradicional, realiza-se desvinculado dos demais, permanecendo alheio à conexão global dos setores da produção. Nasce assim a aparência ideológica de uma autonomia dos processos de trabalho, cuja direção deve ser deduzida da natureza interna de seu objeto. O pensamento cientificista contenta-se com a organização da experiência, a qual se dá sobre a base de determinadas atuações sociais, mas o que estas significam para o todo social não entra nas categorias da “teoria tradicional”. Em outros termos, a teoria tradicional não se ocupa da gênese social dos problemas, das situações reais nas quais a ciência é usada e dos escopos para os quais é usada. Chega-se, assim, ao paradoxo de que a ciência tradicional, exatamente porque pretende o maior rigor para que seus resultados alcancem a maior aplicabilidade prática, acaba por se tornar mais abstrata, muito mais estranha à realidade (enquanto conexão mediatizada da práxis global de uma época) do que a teoria crítica. Esta, dando relevância social à ciência, não conclui que o conhecimento deva ser pragmático; ao contrário, favorece a reflexão autônoma, segundo a qual a verificação prática de uma idéia e sua verdade não são coisas idênticas.

A teoria crítica ultrapassa, assim, o subjetivismo e o realismo da concepção positivista, expressão mais acabada da teoria tradicional. O subjetivismo, segundo Horkheimer, apresenta-se nitidamente quando os positivistas conferem preponderância explícita ao método, desprezando os dados em favor de uma estrutura anterior que os enquadraria. Por outro lado, mesmo quando os positivistas atribuem maior peso aos dados, esses acabam sendo selecionados pela metodologia utilizada I utilizada. E esta atribui maior relevo a determinados i nados aspectos dos dados, em detrimento mento de outros.

A teoria crítica, ao contrário, pretende ultrapassar tal subjetivismo, visando a descobrir o conteúdo cognoscitivo da práxis histórica. Os fatos sensíveis, por exemplo, vistos pelos positivistas como possuidores de um valor irredutível, são, para Horkheimer, “pré-formados socialmente de dois modos: pelo caráter histórico de objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão que percebe”.

Outros elementos de crítica ao positivismo, sobretudo os aspectos políticos nele envolvidos, encontram-se em uma conferência de Horkheimer, em 1951, com o título Sobre o Conceito de Razão. Nessa conferência, ele afirma que o positivismo caracteriza-se por conceber um tipo de razão subjetiva, formal e instrumental, cujo único critério de verdade é seu valor operativo, ou seja, seu papel na dominação do homem e da natureza. Desse ponto de vista, os conceitos não mais expressam, como tais, qualidades das coisas, mas servem apenas para a organização de um material do saber para aqueles que podem dispor habitualmente dele; assim, os conceitos são considerados como meras abreviaturas de muitas coisas singulares, como ficções destinadas a melhor sujeitá-las; já não são subjugados mediante um duro trabalho concreto, teórico e político, político, mas exemplificados ficados abstrata e sumariamente, através daquilo que se poderia chamar um decreto filosófico. Dentro dessas coordenadas, a razão desembaraça-se da reflexão sobre os fins e torna-se incapaz de dizer que um sistema político ou econômico é irracional. Por cruel e despótico que ele possa ser, contanto que funcione, a razão positivista o aceita e não deixa ao homem outra escolha a não ser a resignação. A teoria justa, ao contrário escreve Horkheimer, “nasce da consideração dos homens de tempos em tempos, vivendo sob condições determinadas e que conservam sua própria vida com a ajuda dos instrumentos de trabalho”. Ao considerar que a existência social age como determinante da consciência, a teoria crítica não está anunciando sua visão do mundo, mas diagnosticando uma situação que deveria ser superada.

Em suma, a teoria crítica de Horkheimer pretende que os homens protestem contra a aceitação resignada da ordem total totalitária. A “razão polêmica” de Horkheimer, ao se opor à razão instrumental e subjetiva dos positivistas, não evidencia somente uma divergência de ordem teórica. Ao tentar superar a razão formal positivista, Horkheimer não visa suprimir a discórdia entre razão subjetiva e objetiva através de um processo puramente teórico. Essa dissociação somente desaparecerá quando as relações entre os seres humanos, e destes com a natureza, vierem á configurar-se de maneira diversa da que se instaura na dominação. A união das duas razões exige o trabalho da totalidade social, ou seja, a práxis histórica.

Habermas: tecnicismo e ideologia

Jürgen Habermas desenvolve sua teoria no mesmo sentido de Horkheimer. Para ele, a teoria deve ser crítica, engajada nas lutas políticas do presente, e construir-se em nome do futuro revolucionário para o qual trabalha; é exame teórico e crítico da ideologia, mas também crítica revolucionária do presente.

O projeto filosófico de Habermas pode ser sintetizado em termos de uma crítica do positivismo e, sobretudo, da ideologia dele resultante, ou seja, o tecnicismo. Para Habermas, o tecnicismo é a ideologia que consiste na tentativa de fazer funcionar na prática, e a qualquer custo, o saber científico e a técnica que dele possa resultar. Nesse sentido, pode-se falar de um imbricamento entre ciência e técnica, pois esta, embora dependa da primeira, retroage sobre ela, determinando seus rumos. Essa vinculação, mostra Habermas, é particularmente sensível nos Estados Unidos (na URSS, por suposição ocorreria algo análogo), onde a Secretaria de Defesa e a NASA são os mais importantes comanditários em matéria de pesquisa científica. Na medida em que se considera o complexo militar industrial, particularmente observável nos Estados Unidos, e na medida em que se releva aquela comandita, tem-se como conseqüência um novo complexo que poderia ser referido como complexo ciência-técnica-indústria-exércitoadministração. Nesse complexo, o processo de mútua vinculação entre ciência e técnica amplia-se tornando-se um processo generalizado de realimentação recíproca que Habermas compara a um sistema de vasos comunicantes. Desse modo, ciência e técnica tornam-se a primeira fora produtiva, subordinando todas as demais: Para Habermas, “são os cientistas e os técnicos que, graças a seu saber daquilo que ocorre num mundo não vivido de abstrações e de deduções, adquiriram imensa e crescente potência (...), dirigindo e modificando 0 mundo no qual os homens possuem, simultaneamente, o privilégio e a obrigação de viverem”. Assim, esse contexto, não apenas técnico-científico, mas também econômico-político , passa a ser a conotação da técnica. Nesse sentido, o autor ataca a ilusão objetivista das ciências. Contra a ilusão da teoria pura, Habermas procura trazer à tona as raízes antropológicas da prática teórico-científica e evidenciar os interesses, que estão no princípio do conhecimento, particularmente do conhecimento científico.

No plano da filosofia social, Habermas critica o objetivismo ontológico e contemplativo da filosofia teórica tradicional. Para ele, em nenhum caso a filosofia poderia ser propriamente uma ciência exata, e as pretensões que ela pode (e poderá) manifestar nesse sentido não fazem senão testemunhar sua contaminação pelo objetivismo positivista das ciências; nesse contexto ela não é mais que uma especial idade entre outras, no seio da instituição universitária, colocando-se “junto às ciências” e afastada das preocupações de um público leigo, devido a seus refinamentos teóricos.

A crítica do positivismo científico e filosófico, empreendida por Habermas, é inseparável de sua luta contra o objetivismo tecnocrático. O positivismo e o tecnicismo não passam, para ele, de duas faces da mesma e ilusória moeda ideológica: tanto um, como outro, não seriam mais que “manchas turvas no horizonte da racionalidade”.

Herbert Marcuse

Herbert Marcuse

Herbert Marcuse nasceu em Berlim em agosto de 1898, sendo de origem judaica, De sua juventude sabemos que participou em 1918 do movimento revolucionário spartakista; em 1925, já reconciliado na vida acadêmica (formou-se em filosofia por Berlim e Friburgo), publicou seu primeiro trabalho, um levantamento bibliográfico sobre Schiller. Estudos com Martin Heidegger levaram-no ao doutorado em filosofia em 1927, com uma tese sobre Hegel, a grande influência filosófica em seu pensamento. Esta tese, ampliada, transformar-se-ia em 1932 num erudito livro sobre Hegel e a história: A ontologia de Hegel e o fundamento de uma teoria da historicidade, o que lhe valeu ser feito assistente de Heidegger. Com a ascensão do nazismo, foge Marcuse em 1933 para Genebra, e em 1934 se instala nos Estados Unidos, ao lado dos sociólogos, também neo-hegelianos, Max Horkheimer e Theodor Wiesengrund Adorno. Começa então um longo período de pesquisas com estes dois, e com a equipe que constituía o centro da intelligentzia alemã exilada nos Estados Unidos por causa de Hitler: o “Institut Für SozialForschung”, o “Instituto de Pesquisas Sociais”. Desta época deixou-nos Marcuse enorme quantidade de ensaios que apresentam os germens das teses a serem desenvolvidas nos livros de sua maturidade: a preocupação com o desenvolvimento incontrolado da tecnologia, o racionalismo dominante nas sociedades modernas, os movimentos repressivos das liberdades individuais, o aniquilamento da Razão – e por Razão entende Marcuse o sentido hegeliano deste conceito, a possibilidade do homem desenvolver inteira e livremente suas potencialidades. Quais são essas potencialidades? É esta pergunta objeto também das pesquisas dos pensadores no "Instituto de Pesquisas Sociais". Também desta época são as concepções com as quais estes pensadores (mais tarde Adorno e Horkheimer serão conhecidos como líderes do “grupo de Frankfurt”, por ser esta cidade aquela onde, cessada a guerra, eles voltam a ensinar na Europa) abalam uma das teses fundamentais do marxismo: a revolução como responsabilidade histórica do proletariado. Para os membros do grupo de Frankfurt, o proletariado se perdeu ao permitir o surgimento de sistemas totalitário como o nazismo e o stalinismo por um lado, e a "indústria cultural" dos países capitalistas pelo outro lado. A "indústria cultural", termo criado por Adorno e Horkheimer em seu livro de 1947, a Dialética do Iluminismo, e o fenômeno que melhor conhecemos como "cultura de massa". Quem substitui os proletários? Aqueles cuja ascensão a sociedade moderna de modo algum permite, os miseráveis que o bem-estar geral não conseguiu incorporar, as minorias raciais, os outsiders.

Durante a segunda grande guerra ocupa Marcuse uma posição no Departamento de Estado americano (mais precisamente, foi de 1942 a 1950 chefe de seção nesta secretaria de governo dos Estados Unidos). Quando em 1950 Theodor Adorno e Max Horkheimer voltam para a Alemanha, Marcuse prefere não acompanhá-los, ficando como professor de Ciência Política na Universidade Brandeis. Serão publicados na década de 50 dois de seus mais importantes livros, o Eros e Civilização e o Marxismo Soviético. No primeiro tenta Marcuse mostrar que o homem pode ser feliz; no segundo, o pensador desmascara o sistema soviético, mostrando de que manei ra está o totalitarismo russo afastado das concepções humanísticas de Marx. Estas obras trazem uma certa fama para Marcuse, fama que se incentiva quando da publicação, em 1964, de Homem Unidimensional (o título português deste livro é Ideologia da Sociedade Industrial,) Em Homem Unidimensional Marcuse ataca violentamente todas as características repressivas e irracionais do estado pós-industrial moderno, o “Welfare State”, o Estado do Bem-Estar Social considerado por ele como o “Warfare State” – o Estado Beligerante. Em 1967 volta Marcuse á Europa, para um curso na Universidade Livre de Berlim. Nesta conhece Rudi Dutschke, líder estudantil alemão que muito se chega ao velho professor. Dutschke, formado em sociologia, fundamentará suas lutas sobre as idéias de Marcuse. O caos provocado na Alemanha pelo movimento de Dutschke é tão grande que em inícios de 1968 este sofre um atentado a bala, deixando-o moribundo por várias semanas (o atentado foi precedido por uma violenta campanha da imprensa dirigida pelo truste alemão dos jornais, as emprêsas Springer, que acusavam Dutschke de "baderneiro" e "irresponsável") . Devido a esta ligação de Dutschke com Marcuse, o nome do professor ganha rapidamente projeção internacional, projeção acentuada pela revolta francesa do mês de maio. Em junho de 1968 Marcuse volta à Alemanha para um debate com os estudantes que estavam amotinando Berlim. Não e um encontro fácil, e o velho filósofo sai do anfiteatro da Universidade Livre de Berlim debaixo de aplausos e vaias violentos. Nos Estados Unidos, Marcuse passa agora a lecionar na Universidade da Califórnia, sempre na cadeira de Filosofia e Ciência Política.

Tornando-se uma figura carismática malgré lui, desenrolam-se em torno de seu nome os mais estranhos incidentes. A Ku Klux-Klan ameaça-o de morte, chamando-o "asqueroso cão comunista". Mas a imagem que mais freqüentemente dele aparece na imprensa é a de um velho tranqüilo de roupa informal conversando amigavelmente com seus alunos. Os testemunhos que temos não desmentem essa imagem, nem sua filosofia.

As Idéias de Marcuse

Herbert Marcuse é um legítimo pensador alemão. O centro de sua filosofia é Hegel. Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart em 1770. Aos vinte anos, estudante em Tübingen, pôde Hegel entusiasmar-se, como toda a intelectualidade alemã se estava então entusiasmando, com a Revolução Francesa. A vida de Hegel é bastante tumultuada, mas apesar disso, veio o filósofo morrer em 1831 em posição de reconhecimento oficial (de 1829 a 1830 tinha sido Hegel reitor da Universidade de Berlim), Grandes dificuldades bloqueiam nosso acesso ao pensamento hegeliano. Diz-se que o filósofo escrevia seus livros duas vezes: da primeira todas as coisas eram ditas, esclarecendo o assunto. Da segunda vez o supérfluo era cortado do texto, ficando este denso, e pouco acessível. Verdade ou não, o fato é que de Hegel descendem correntes filosóficas as mais conflitantes. Marcuse toma em Hegel duas noções capitais, a idéia de “Razão” e a idéia de “Negatividade”. A Razão, como dissemos, é a faculdade humana que se manifesta no uso completo feito pelo homem de suas possibilidades. Não se pode compreender a “possibilidade” longe do conceito de “necessidade”. O que necessitamos? A necessidade nos dirige a certos objetos cuja falta sentimos. A possibilidade mede o raio de nosso alcance face a tais objetos. Se quero um apartamento mas não tenho dinheiro para comprá-lo, o objeto de minha necessidade é o apartamento, e a medida de minha possibilidade é o dinheiro que me falta. É muito fácil compreender como a falta de dinheiro representa um bloqueio falso, fictício, á satisfação de meu desejo. Na realidade posso ter o apartamento, mas certas convenções sociais, que respeito de modo mais ou menos acrítico, me impedem de possuí-lo. Ao mesmo tempo, se me interrogo a respeito da minha necessidade face ao apartamento, essa também se dissolve. O apartamento é um símbolo de status social, ou resultado de certas convenções visando ao gosto que seriam, em outras condições, muito discutíveis, e que nem sempre me possibilitam morar satisfatoriamente. A minha necessidade se revela, portanto, como uma falsa necessidade, assim como o bloqueio pela falta de dinheiro das minhas possibilidades era um bloqueio falso. Onde se encontram, então, minhas necessidades e minhas possibilidades? Como compreenderemos o que e Razão? Marcuse muito se preocupa com este problema ao longo de toda a sua obra, sempre polêmica.

Como pensador, Marcuse é, acima de tudo, hegeliano, ou seja, radicalmente dialético e crítico: a crítica ao modo de vida atual significa a manifestação de um dos lados daquela negatividade que Marcuse identificará como sendo o núcleo da dialética em Hegel (para Marcuse, a dialética sob forma triádica: tese, antitese e síntese é uma máscara sobre o que este conceito representava mesmo para Hegel). Como vê Marcuse a vida nas sociedades industriais modernas? Um fantasma atravessa estas sociedades: o nacionalismo. Para Marcuse, como antes dele para Adorno e Horkheimer, para Georg Lukács e mesmo para Marx, particularmente num de seus textos menos lidos e ainda menos compreendidos, particularmente nos últimos tempos: os “Fundamentos da Crítica à Economia Política”, o nacionalismo, a tendência das sociedades modernas à administração total, à tecnocracia burra, à planificação de todos os setores da vida tem sua origem no mercantilismo burguês. Para haver comércio e preciso haver dinheiro, e preciso que todas as coisas sejam reduzidas a uma medida comum, o dinheiro, a moeda. Essa quantificação manifestando-se nas relações interpessoais do homem atingirá, pouco a pouco, todas as regiões da vida humana. A apologia que hoje em dia se faz do “rigor” das ciências, da "precisão" de resultados que as modernas técnicas nos oferecem é compreendida por todos os pensadores acima citados como resultando em última análise da extensão do comércio a todos os setores da vida humana. A crítica ao nacionalismo, Marcuse a encontra em Marx, portanto.

E o Marcuse freudiano? Em Freud Marcuse encontra a possibilidade do homem ser feliz. Eros e Civilização tenta provar essa tese. O que faz o homem infeliz é que o mundo bloqueia a realização de seus desejos. Esta oposição do mundo a nós foi chamada por Freud “princípio da realidade”. Será este princípio superável? Como superá-lo? Para Marcuse, o princípio da realidade resulta de condições históricas específicas, isto é, a infelicidade é um fenômeno in- separável de determinadas situações sociais. Assim sendo, quando atingirmos a situação social correta, o homem poderia ser feliz. Quando será? No “Império da Razão”. Em Eros e Civilização Marcuse nos mostrará que o homem guarda lembranças profundas de uma possibilidade da felicidade, lembrança presente nos mitos de Orfeu e Narciso.

Mas Eros e Civilização ainda se encontra numa região mais ou menos metafísica do pensamento. A descida para o concreto se faz na Ideologia da Sociedade Industrial. Neste livro Marcuse repete a crítica ao racionalismo (irracional, pois não fundado na verdadeira Razão) da sociedade moderna, e tenta ao mesmo tempo esboçar o caminho que poderá nos afastar dele. O caminho será, por um aspecto, a contestação da sociedade pelos marginais que a sociedade desprezou ou não conseguiu beneficiar. Será por outro aspecto o desenvolvimento extremo da tecnologia, que deverá ter, segundo Marx e Marcuse, efeitos revolucionários. Quais são estes efeitos? O problema da sociedade moderna é a invasão da mentalidade mercantilista e quantificadora a todos os domínios do pensamento. Essa mentalidade se representa economicamente pelo valor de troca, ligado de modo íntimo aos processos de alienação do homem. E, segundo Marx na sua obra referida, os Fundamentos, com o desenvolvimento extremo da tecnologia “a forma de produção assente no valor de troca sucumbirá”. A sociedade moderna, sentindo, que sua base a tecnologia - contém seu rompimento, age repressivamente para evitar este avanço extremo. Será este reprimido? Marcuse espera que não, e também esperamos nós.

Bibliografia:

Marcuse, Vida e Obra – Francisco Antônio Doria – José Álvaro Editor S.A. / Paz e Terra – Rio de Janeiro, Guanabara, 1974

Os Pensadores - Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno - Consultoria Paulo Eduardo Arantes - Ed. Abril Cultural

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